O Trecho a seguir é uma prévia do livro O Refúgio da Arte, do autor Evezel, que será publicado pela Editora Izyncor.
Aproveite, caro leitor, para ver um pouco do mundo que está por vir!
Por muito tempo Arte reinou soberana, sem rival, sem desafio. Do seu trono solitário em meio a nuvens, as inspirações fluíam como correntes de um rio poderoso. Cada onda uma epifania a inundar as mentes dos artistas terrenos, dotando-os com o toque genial que transformava o mundo.
Com o passar das eras, do seu esplendor divino, enquanto tecia as sinfonias do cosmos e as pinturas dos céus, Arte passou a ouvir uma voz sussurrante e incômoda ressoar em sua consciência, semeando certa intranquilidade. Esse eco insidioso de sua própria essência incitava rebelião contra o meticuloso equilíbrio que ela cultivara. Soprava sugestões corrompidas e caóticas, distorcendo seus impulsos criativos em direções desconexas e sem propósito. Aos poucos, essa presença rebelde tornou-se esmagadora, manchando sua essência com uma vontade feroz de desfigurar-se, compelindo-a a criar de maneira descuidada e a revelar-se em formas às quais desafiavam sua própria natureza. O prazer desses atos perturbadores era intoxicante e repulsivo, deixando sua perfeição com cicatrizes maculadas.
Era a inovação pelo simples prazer de perturbar, um impulso que começou a refletir-se como rebeldia nos artistas inspirados pelo sopro de Arte. A desordem criativa propagada pela voz sedutora e insidiosa afetava as mais diversas formas de expressão. Quadros que mais pareciam esboços caóticos de sonhos febris surgiam em galerias, onde objetos banais eram proclamados como esculturas quando suspensos em posições absurdas. Melodias harmoniosas foram substituídas por dissonâncias audaciosas, celebrando o caos em lugar da cadência. Homens declamavam monólogos desconexos, preenchendo palcos com gritos e murmúrios sem sentido. Essas e outras subversões artísticas deixavam profunda mácula no senso estético de Arte, provocando-lhe desgosto visceral.
Assombrada por essa dissonância interna, Arte percebeu que a existência conjunta com aquela sombra era insustentável. Assim, para preservar sua integridade e legado, com resolução que só as divindades possuem, decidiu purgar essa faceta rebelde de seu ser. Não foi uma simples divisão, mas um ato dramático e etéreo de auto cisão, uma catarse celestial. Num momento agoniante e transcendental, curvou-se em um arco de dor e regurgitou aquela existência disforme em linhas etéreas tortas, desconexas e vulgares, formando um homúnculo de caos e dissonância. Ao contemplar aquela entidade desforme e desajustada, com a essência de tudo que repudiava em si mesma, a nomeou conforme as ideias que propagava: Desaire, sua própria antítese; instável, deselegante e rebelde.
Arte sentiu-se aliviada, como se pudesse respirar sem o constante incômodo daquela força rebelde. No entanto, esse alívio foi passageiro, pois logo percebeu que o perigo expelido não era controlável.
Livre de suas amarras internas, Desaire não se contentava em ser a simples sombra da grandeza de Arte. Ele começou a agir por conta própria, às escondidas, e estava de forma ativa subvertendo a criação de sua genitora. Em sua natureza caótica e dissonante, interceptava e distorcia, corrompendo com ímpeto ainda maior as inspirações, antes puras e sublimes, que Arte enviava para os criadores terrenos. Ele infiltrava suas ideias transgressoras, instigando artistas a desafiar a própria essência da criação. Obras-primas se tornaram paródias grotescas, pervertendo a beleza em algo disforme e perturbador. Pinturas que deveriam capturar a luz se tornaram sombras inquietantes; músicas em vez de elevar a alma, se transformaram em barulhos perturbadores; palavras pararam de inspirar e tornaram-se venenos corrosivos para o espírito criativo.
Arte viu naquela mera existência poder suficiente para desestabilizar a ordem o qual ela tanto se dedicava a manter. Desaire, embora afastado de seu ser, continuava a representar perigo crescente, como um câncer silencioso, devorando a ordem cultivada por Arte. Não poderia permitir que aquela força destrutiva continuasse a corromper a criação.
Horrorizada, Arte decidiu aprisionar sua essência rejeitada e, para vigiá-la de perto, fez da prisão de Desaire aquilo que ele tanto dizia inspirar; o prendeu em um quadro rústico e sem qualquer proporção ou criatividade artística. Contudo, mesmo confinado, aquele homúnculo vomitado mantinha sua forma inconstante e imprevisível, com aparência aleatória para zombar de Arte e suas normas estéticas, refletindo imprevisibilidade corrosiva à harmonia ao seu redor.
Não apenas sua forma incomodava Arte, Desaire também era insuportável e eloquente. Sua voz, uma cacofonia incessante, inundava o espaço com palavras e conceitos desordenados, assim, mesmo agrilhoado entre as molduras, com profano domínio da retórica, Desaire conseguia infiltrar-se nos pensamentos de Arte, instilando rebeldia. Sua influência, insidiosa e persistente, fez Arte, em momentos vulneráveis, abraçar impulsos transgressores e resquícios do caos que ela tentava suprimir. Logo tornou-se evidente que a mera contenção física de Desaire era insuficiente.
O sentenciou ao perpétuo silêncio em uma caverna jazida nas profundezas do oceano. Um lugar misterioso, onde seus tentáculos não se estenderiam a artista algum. Assim, usando vasta parte de seu poder, ela expurgou aquele ser maleável e vomitado que tanto desprezava, levando consigo seus pensamentos desajustados e imperfeitos.
Com seus poderes silenciadores, Arte mantém as barreiras dessa prisão com vigilância incansável. Pois um simples deslizar de sua atenção forneceria a Desaire a brecha que ele tanto deseja, permitindo-lhe romper sua mordaça e espalhar de novo sua rebeldia aos quatro ventos.
Subestimá-lo, contudo, provou-se um erro fatal. Mesmo das profundezas de sua prisão, Desaire mantinha uma centelha de poder divino. Dessa forma, enquanto Arte se esforçava para preservar sua criação pura, ele lutava, com fervor e desespero, contra os limites da sua prisão.
A partir das profundezas de seu confinamento, com uma destreza invejável, Desaire distorcia-se em sinistros tentáculos, filamentos espirituais, invisíveis aos olhos, mas palpáveis à alma. Eles deslizavam para além das barreiras de sua cela, encontrando caminhos nas sombras e nos espaços entre os pensamentos dos artistas. Como serpentes astutas, se enroscavam ao redor das percepções e emoções dos criadores, sussurrando promessas de liberdade absoluta na criação.
Mesmo em sua prisão, Desaire encontrou uma maneira de forjar seu exército para agir em seu nome. Com habilidade de instigar ideias subversivas, enredava os artistas em sua visão distorcida da arte, onde a essência era sacrificada em favor do choque e da provocação. Ele promovia a ideia onde a verdadeira arte não deveria seguir normas, mas sim desafiar o convencional, celebrando o caos e a desordem. Insinuava que qualquer expressão, por mais trivial ou grotesca, poderia ser elevada ao status de arte, bastava romper com o estabelecido e provocar reações, mesmo que vazias.
Arte, sentada em seu trono em meio as nuvens, fitando os oceanos com raiva, concentrou sua força, pulsando com a vida das inspirações já concebidas. Seus olhos, brilhantes como estrelas cadentes, fixaram-se no vazio das nuvens, enquanto suas mãos, elegantes e precisas, moviam-se em um balé de gestos meticulosos. Cada movimento, um comando, cada suspiro uma onda de criação que moldava a quintessência em arquitetura. Das pontas dos seus dedos, faíscas de pura inspiração saltaram para as nuvens ao redor, tecendo-as em torres altas e muralhas robustas começaram a se materializar na bruma como se fossem sonhos tornando-se realidade.
Ela era o maestro conduzindo a mais bela das sinfonias. As nuvens, obedientes e maleáveis, curvaram-se à sua vontade, formando os grandes portões, as janelas amplas que olham para o infinito e longos corredores ornamentados em algo semelhante a gesso e pedra. O castelo, uma obra artística em si mesmo, cresceu não apenas em tamanho, mas em magnificência onde cada nova adição era o testemunho do poder e da paixão da Arte.
Este castelo, concebido no coração das nuvens, foi a maior obra já criada por ela. Representava a fortaleza erguida em devoção à harmonia, onde a verdadeira beleza não é apenas percebida, mas compreendida em sua profundidade, refletindo a ordem intrínseca da criação, a pureza da expressão genuína, e a justiça que valoriza o além das aparências superficiais.
Acomodada em seu trono Arte vislumbrou a ascensão de seu domínio; cada pedra e cada torre a extensão do seu desejo de nutrir e proteger o legado criativo da humanidade. Era aqui que Arte, determinada a combater a Desaire e sua insurgência, refugiaria as almas mais iluminadas já tocadas por sua graça.
Com a visão de formar um exército dos inigualáveis criadores, ela se propôs a convocar aqueles cujo talento e inspiração eram tão potentes que poderiam, com um único sussurro, dar vida às sombras. Assim, aquele local se tornou a academia para os escolhidos.
Neste local sagrado, Arte revelaria aos seus pupilos os mistérios mais profundos de sua essência, ensinando-os sobre o verdadeiro significado e o poder da criação artística. Assim, armados com esse conhecimento transcendental, esses discípulos aprenderiam a tecer a beleza em formas inimagináveis, capacitados para enfrentar a desordem semeada por Desaire.
Erguido para resistir às tempestades da desordem semeada por Desaire, este santuário, mais que um simples colosso nas nuvens, tornou-se o palco central para a defesa e perpetuação da verdadeira essência artística, na qual a beleza e a ordem se erguem como baluartes inabaláveis contra o caos.
Por fim, o castelo foi batizado como O Refúgio da Arte, uma cidadela de inspiração e o bastião da beleza eterna. Um local de resistência e proteção, uma fortaleza.
Prepare-se, caro leitor, pois a arte como a conhecemos está prestes a mudar para sempre.